Fonte:Revista de História da Biblioteca Nacional
Houve queima de bruxas e autos de fé por aqui? Da não tão inocente fogueira de São João ao sistema judiciário brasileiro, passando pela reforma do Código Penal, a Inquisição deixou marcas na nossa cultura que grande parte da população desconhece. Com a proposta de revisar diversos mitos a respeito da Inquisição no Brasil, a Revista de História da Biblioteca Nacional publica em outubro um dossiê dedicado ao período, que oferece uma seleção de artigos dos maiores pesquisadores brasileiros e internacionais, como Bruno Feitler, Francisco Bethencourt, Luis Mott e Ronaldo Vainfas, além de entrevista com Anita Novinsky.
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Entre outros assuntos, mostra que por aqui nenhuma bruxa foi queimada, mas judeus, homossexuais, africanos e indígenas não escaparam da perseguição. Também são postas em questão crenças como sobrenomes derivados de árvores, a exemplo de Nogueira ou Pereira, indicarem ascendência judaica. E, para concluir, o dossiê dá pistas dos novos caminhos a serem seguidos pelos estudos recentes do tema.
Outros destaques da edição são artigo sobre Antonio Conselheiro e como o líder nordestino influenciou artistas brasileiros contemporâneos; análise do livro “O negro no futebol brasileiro”, de Mário Filho; e reportagem sobre a revitalização da zona portuária carioca, que resgata a história das primeiras intervenções urbanísticas da região.
Lançada em 2005, a Revista de História da Biblioteca Nacional é a única em seu segmento editorial especializada em História do Brasil e traz, a cada mês, reportagens e artigos assinados por importantes historiadores e sociólogos. A publicação é mensal e vendida em bancas de todo o país. Seu conselho editorial é formado por Alberto da Costa e Silva, Caio César Boschi, João José Reis, José Murilo de Carvalho, Laura de Mello e Souza, Lilia Schwarcz, Luciano Figueiredo, Marcos Sá Corrêa, Marieta de Moraes Ferreira, Ricardo Benzaquen e Ronaldo Vainfas.
Segundo Ronaldo Vainfas, Inquisição portuguesa só passou a frequentar as terras brasileiras no final do século XVI. Entre os anos 1540 e 1560, só houve dois casos: o do donatário de Porto Seguro, o blasfemo Pero do Campo Tourinho, e o do francês calvinista Jean de Bolés. O primeiro foi enviado para Lisboa a ferros, e o segundo, preso pelo bispo da Bahia, que tinha jurisdição sobre as heresias. Foram ocorrências isoladas e desvinculadas da preocupação maior do Santo Ofício lusitano desde a sua criação: perseguir os cristãos-novos judaizantes.
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A estreia da Inquisição no Brasil ocorreu em 1591, com a primeira visitação do Tribunal de Lisboa à Bahia e a Pernambuco. Justifica-se: na segunda metade do século XVI, o Brasil recebeu muitos cristãos-novos envolvidos com a nascente economia açucareira. Eles viveram em paz durante décadas. Muitos continuaram a professar o judaísmo nas sinagogas domésticas, além de se unirem, pelo matrimônio, com os cristãos-velhos. A ameaça de índios na terra e de piratas no mar funcionava como força de coesão.
Tudo mudou com a chegada da visitação, que integrou nova estratégia inquisitorial, em tempo de União Ibérica, voltada para o Atlântico hispano-português. A estreia do Santo Ofício no Brasil amedrontou mais do que prendeu os cristãos-novos, embora tenha destroçado a sinagoga de Matoim, no Recôncavo Baiano. Em todo caso, deixou um rastro deletério, rompendo a solidariedade cotidiana que unia cristãos-velhos e novos da Colônia.
Segundo Daniela Buono Calainho, Nos tempos da Inquisição, muitos compartilhavam várias crenças mágico-religiosas misturando práticas cristãs, indígenas e africanas em nossa terra. Considerados hereges pelo Tribunal do Santo Ofício português, foram acusados de firmar um pacto com o diabo e tachados de feiticeiros pela Igreja.
Adivinhações, sortilégios, uso de amuletos protetores, feitiços para relações amorosas, confecção de unguentos e poções mágicas, práticas curativas que fugiam aos padrões da medicina oficial, cerimônias de culto a ídolos pagãos, comunicação com os mortos, benzeduras, evocações ao diabo – enfim, todo este universo de crenças e práticas encantou a população colonial. No entanto, jogou seus protagonistas nos temidos cárceres inquisitoriais.
Mas, dentre os delitos heréticos do foro da Inquisição, a feitiçaria foi um dos menos perseguidos, tanto no Brasil como em Portugal, representando apenas cerca de 3,6% os acusados deste crime nos séculos XVII e XVIII. Nenhuma bruxa foi queimada no Brasil, porque todos os casos de réus acusados pelo Santo Ofício eram enviados para Portugal e lá julgados. E, na verdade, pouquíssimos bruxos e bruxas foram queimados. A maioria deles foi penalizada com degredo e prisão. Os que receberam a sentença de morte na fogueira corresponderam a cerca de 0,6% de todos os réus daquele período. Isto prova que Inquisição não é sinônimo de fogueira. A maioria dos que subiram aos cadafalsos portugueses era de cristãos-novos supostamente judaizantes, ou seja, judeus convertidos ao cristianismo suspeitos de professarem sua fé original em segredo, alvo principal do Tribunal.