Fonte: SuperInteressante
Qual o sentido das deformações?
O psicólogo norte-americano Mark Blumberg assegura que as deformações congênitas proporcionam informação valiosíssima sobre os mecanismos da
evolução e da vida.
Numa das cenas mais impressionantes de Freaks (1932, intitulado A Parada de Monstros em
Portugal), vários seres disformes encurralam uma rapariga entre as
carripanas de um estranho circo. Depois de atacarem o amante da jovem,
procuram apanhá-la no meio de uma terrível tempestade. Antes, ela
tentara assassinar um dos perseguidores para ficar com todo o seu
dinheiro. É verdade que a visão dos indivíduos provoca calafrios. Um
deles, o príncipe Randian, não tem braços nem pernas; como se fosse um
torso vivo, serpenteia pela lama com uma faca entre os dentes. Zip e
Pip, os gémeos siameses, sofrem de microcefalia, isto é, os crânios são
diminutos em comparação com o de uma pessoa normal. Um anão com pouco
mais de 60 centímetros de altura exibe uma navalha diante da mulher que
tenciona matar. Outra personagem, interpretada pelo actor Johnny Eck,
não tem pernas mas desloca-se com agilidade sobre as mãos.
Um artista com falta congênita de dedos, uma deformidade mão que faz com que suas mãos parecem com garras de lagosta
Realizado pelo cineasta norte-americano Tod Browning (1882–1962), este
filme é normalmente incluído no género de terror, mas pode também ser
considerado um documentário, pois mostra sem contemplações os efeitos
das mutações genéticas nos seres humanos. Os actores (atracções de feira
ou de circo na vida real) deixaram uma marca profunda no psicólogo
norte-americano Mark S. Blumberg, da Universidade do Iowa. Esqueçamo-nos, pois, desses pobres indíviduos exibidos diante de um
público crédulo e apreensivo por empresários sem escrúpulos como Phineas
Taylor Barnum (1810–1891), criador de um lendário circo ambulante que
possuía o seu próprio freak show. O psicólogo norte-americano
defende, pelo contrário, que os “monstros” nos permitem reflectir sobre o
produto de um projecto biológico diferente. Proporcionam-nos, em
concreto, uma oportunidade para penetrarmos nos mistérios que a evolução
biológica ainda esconde, 200 anos depois do nascimento de Charles
Darwin.
Não há possibilidades infinitas
Segundo Alberch, não existe apenas um rio de informação genética que
corre inexoravelmente até esgotar o seu percurso e desaguar numa forma
biológica. A analogia é mais vasta e interessante: a química e a
regulamentação dos genes navegam através de muitos cursos, remoinhos e
afluentes que restringem as infinitas possibilidades de produzir
qualquer criatura. Falamos de um jogo com regras específicas, e as
anomalias tornam-se possíveis devido a essas normas. Por conseguinte,
também merecem um lugar no tabuleiro de xadrez evolutivo.
Muito antes, em 1894, William Bateson já antecipava a ideia de que
determinados factores presentes durante o desenvolvimento embrionário
decidem a configuração que um animal poderá ter. As etapas iniciais de
vida exerceriam uma poderosa força interna, enquanto a selecção exterior
ou natural se faria sobretudo sentir na versatilidade das espécies. Os
crocodilos e as tartarugas, por exemplo, não possuem cromossomas
sexuais, mas nascem também machos e fêmeas consoante a temperatura
exterior. Experiências com embriões de peixes de água doce cujos ovos
são submetidos a temperaturas baixas nas primeiras 24 horas após a
fertilização produzem um bestiário de estranhos seres: com duas cabeças,
um único olho...
Resumindo: os darwinistas mais ortodoxos garantem que as espécies,
embora sejam consideradas como entes próprios e independentes, estão na
realidade ligadas entre si. Representam a expressão de um todo. Por sua
vez, a corrente de pensamento de Bateson e Alberch acha que as espécies
são descontínuas, o que seria demonstrado, precisamente, pelos animais
disformes, verdadeiras excepções no império absoluto da selecção
natural.
Na nossa espécie, a lista de excepções que confirmam a regra é longa e
está bem documentada: desde homens com dois seios ou com um polegar a
mais aos bebés com o rosto duplicado (o termo clínico é “diprosopia”).
Blumberg recorda o caso das irmãs Abigail e Brittany Hensel, nascidas
em 1990: um único corpo e duas cabeças completamente desenvolvidas.
“Estes exemplos talvez não constituam o motor da evolução, mas
ajudam-nos a entendê-la melhor. Quer sejam produto dos genes ou
consequência do desenvolvimento embrionário, conseguem sobreviver às
alterações e adaptá-las à sua vida.”